Há 13 anos perdia o meu pai, que por sua vez perdeu a sua batalha contra o cancro. Foi duro, eu era só uma miúda. Ponderei se havia de escrever sobre ele neste blog, se não me estaria a expor demasiado, mas hoje estou assim-assim, muito por isto, muito por outras coisas, e apetece-me.
O meu pai era o pai mais cool e ao mesmo tempo mais estranho que uma miúda podia ter, era músico, e fazia disso vida, não trabalhava num banco e não chegava a casa as 19h. Não. Não se sentava à mesa aos jantares porque estava a trabalhar, a ideia dele de diversão comigo era fazer-me playbacks de músicas conhecidase pôr-me a cantar. Era levar-me para o estúdio e gravar a minha voz. Era pôr-me a tocar em casa. Nunca brincou comigo as bonecas, nunca foi meu paciente quando eu era médica. Não gostava de fazer puzzles. Para isso servia a minha mãe.
Mas eu adorava-o, e ele a mim, ele dizia que eu era a filha preferida, e não, não era filha única, mas ele dizia em comparação com os outros dois que eu era a mais perspicaz, a mais esperta, a mais desenrascada. Como ele, dizia sempre que nós éramos os mais parecidos. Ele lá viu isso em mim mesmo só tento convivido comigo até aos 11. Mas ele lá viu isso em mim.
Hoje vejo que acertou em muito, e errou em muita coisa, é normal. Ele achou que eu ia ser a mais bem sucedida, a que ia lutar mais pelos meus sonhos, e isso, até ver, tem sido o que tenho feito. Penso agora que talvez o tenha feito mais pelo que ele sempre me fez acreditar do que realmente a minha personalidade. Ele condicionou-me em muita coisa, e eu agradeço por isso.
Tento não ser saudosista, ultrapassei tudo muito bem, mesmo sendo a enfermeirinha de trazer por casa, a menina dos remédios, a que animava o pai com histórias de um futuro cheio de netos na casa do Algarve onde gostávamos de passar férias. Coisas que eram certezas para mim. Histórias que eram alentos para ele, mas que ele já sabia que não iam acontecer. E eu também. Mesmo assim dizia que ele não podia ir, então ele ainda tinha que fazer tanta coisa comigo. Mas não o fez. O cancro levou a melhor. E eu fiquei sozinha muito tempo.
Ainda hoje penso nele, e mesmo quando estou bem disposta penso nas coisas que lhe gostava de contar. Tenho uma enorme tristeza ter ficado tanto por dizer, tanto por contar. Tanta coisa da vida dele que eu, inevitavelmente, nunca irei saber. Isso realmente é das coisas que mais me custa. É o desconhecido da vida dele, é o nunca ter conselhos masculinos, o ter passado a adolescência e agora o início da minha vida adulta sem um pai. E o que eu precisava dele. E do colo dele.
Nunca mais me vou esquecer dessa sexta-feira, último dia de escola antes das férias da Pascoa, em que fiquei quase duas horas à espera da minha mãe na escola. E ela não aparecia. Nada dela. Não havia cá telemóveis como há hoje, em 1998, não era comum. A minha mãe tinha que partilhava com o meu pai quando estava internado, e eu lá saquei do papelinho e fui ligar de um quiosque. Já era hábito ela esquecer-se de mim. Não a condeno, mas acontecia com regularidade, achei que era mais um dia. Lá me sentei na beira da estrada, com um livro para ler, e ao fim de hora e meia, a senhora do quiosque lá me disse, "não lhe quer ligar?". Agradeci e assim o fiz. Pediu desculpa, que já ia a caminho. E vem buscar-me um vizinho. Leva-me para casa e para mim era galhofa, a filha era um ano mais nova e eu adorava ir a casa dos outros, era sempre divertido estar numa família normal.
Eu não sabia que todos já sabiam. Quando voltei a casa no final do dia, não queria acreditar. E não acreditei, a luz da casa de banho estava ligada e a porta aberta, estavam lá as botas dele preferidas. Ele só podia estar na casa de banho. Mas não. Não fui ao funeral. Não fui ao enterro. Nunca fui ao cemitério nem a missas do ou pelo 7 dia. No fundo eu já sabia que ia acontecer. Mas custa-me sempre o luto, sou péssima no luto. Mesmo quando sei que vai acontecer.
Pai, gostava de ter dito que és o único homem que eu quero que me dê música.
=')
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